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Etnografia de uma conquista

um dia, finalmente, você vence o que disseram que deveria ser vencido.

coloca-se, então, um pensamento adverso na frente do ego
que interroga a vitória, como se fizesse uma observação participante
sobre as escolhas desta vida

desconfiando que, de fato, não deseja o resultado na mesma medida
do seu papel timbrado, onde um estranho põe a firma:
“você conseguiu.”

mas conseguir o quê?
fora o silêncio da manhã, ou os noturnos de Chopin
o resto é sal sobre a ferida
de uma eterna inquietude que jaz escondida
no ocaso indecifrável dos astros.

Natureza

no avesso da palavra, do cumprimento,
dos hábitos diários,
habita um constrangimento de ser o que se é
o lado estranho torto falho
que se redime pelo imaginário
da ignorância coletiva.

não está domado, necessariamente,
por sua "terapia em dia"
o monstro lúdico e pacífico
do trauma

que os espíritas querem vencer pela alma
os médicos querem vencer pelos órgãos
os coaches querem vencer pelo grito
mas a vítima aprende a vencer pelo choque:

exercício infinito e só
de se tornar Iogue
por dentro.

O último voo


I

foi sem avisar.

para alguns, disse que havia cancelado a passagem
para outros, nada precisou dizer
porque estes já não o sabiam

jurava que o destino
ajustar-se-ia ao seu desejo de ser livre
como um sujeito convencido, que peita o tempo e fala:
— Duvido!
mas ele passa
por baixo, por cima

e, se der mole, ele passa até por dentro
passa através.

II

no espaço interno, faltava tudo o que não era contingência
e, muito menos, a coragem

no espaço externo, faltava desembaraçar o mar
da terra

porque o peso das nuvens, acumuladas na janela
atormentou-se em sua angústia de chegar

(depressa).

III

e após três noites em claro
mas sem nenhuma clareza
ele vestiu o casaco novo
deixou uma carta sobre a mesa

fumou um cigarro, correndo
e partiu, rumo ao esquecimento.

Para Wilhelm Reich

I

entre a função social que me deram
e o recalque do prazer que me roubaram
existe o agora em que me acho

numa praça mal cuidada
o coração do meu país
fica o café metido a besta, onde eu paguei para pensar

do lado esquerdo, uma senhora elegante em vestido vermelho
come bolo de cenoura
e aprecia um bom romance
para sentir alguma coisa

o velho bonde que voltou à Rio Branco, com ar de novidade
e os bares que mudaram de nome porque os jovens mudaram de cidade
tudo celebra a infinitude do trabalho
não como força, não como hábito
mas como som.

II

atrás da avenida, perto dos ruídos
na contramão do pôr do sol que é, no máximo, ilusão de ótica
sobre a perpetuidade do que vibra
quando inventamos uma última resposta

à pergunta de sempre:

— que somos, afinal, senão um sonho sobre o desejo de viver
e a alienação dos meios que desejamos ter
para exercer a vida?

(por baixo da casca
e por cima da ferida
arde
o corte).

III

o Centro inteiro para estar
a praça inteira para andar
e ela pensando no futuro
enquanto o seu café esfria

a senhora de vermelho, que pede bolo de cenoura, todo santo dia

ainda que o gosto pareça distante quando a beleza estranha o olho
(e a liberdade dissocia-se do corpo).