I
entre a função social que me deram
e o recalque do prazer que me roubaram
existe o agora em que me acho
numa praça mal cuidada
o coração do meu país
fica o café metido a besta, onde eu paguei para pensar
do lado esquerdo, uma senhora elegante em vestido vermelho
come bolo de cenoura
e aprecia um bom romance
para sentir alguma coisa
o velho bonde que voltou à Rio Branco, com ar de novidade
e os bares que mudaram de nome porque os jovens mudaram de cidade
tudo celebra a infinitude do trabalho
não como força, não como hábito
mas como som.
II
atrás da avenida, perto dos ruídos
na contramão do pôr do sol que é, no máximo, ilusão de ótica
sobre a perpetuidade do que vibra
quando inventamos uma última resposta
à pergunta de sempre:
— que somos, afinal, senão um sonho sobre o desejo de viver
e a alienação dos meios que desejamos ter
para exercer a vida?
(por baixo da casca
e por cima da ferida
arde
o corte).
III
o Centro inteiro para estar
a praça inteira para andar
e ela pensando no futuro
enquanto o seu café esfria
a senhora de vermelho, que pede bolo de cenoura, todo santo dia
ainda que o gosto pareça distante quando a beleza estranha o olho
(e a liberdade dissocia-se do corpo).