Pular para o conteúdo principal

Postagens

Mostrando postagens de março, 2022

Erosão - parte II: "o cheiro da mudança"

Na varanda, certo dia, eu tomava nota sobre as particularidades de uma manhã.

Enquanto isso, ela dormia, sem imaginar o meu apego às coisas simples da nossa rotina: uma senhora que estende roupas num varal improvisado. Os taxistas que fazem ponto em frente ao bar, e tomam cachaça às sete horas da manhã. Alguns jovens que chegam de noites eternamente compridas. Outros, ainda cheirosos, saem às pressas para atender a compromissos que não devem ter futuro. A repetição esconde a individualidade das pessoas porque envelhecemos em varandas parecidas. Todos nós. Se não em varandas, envelhecemos, quem sabe, em casas geminadas, embaixo da ponte, em conjugados apertados no Bairro de Fátima.

Somos comuns? Somos comuns. De minha parte, eu sempre tive adoração pelo momento da madrugada-quase-dia, como se fosse um abraço que o tempo me dá quando o futuro vem depressa. Ele me diz: “meu filho, pode ficar sozinho agora, porque agora é muito leve, apesar de ser atônito". Você ‘segura’ e aquilo já não é. Quando o presente nos eleva à dignidade da clareza, a gente faz o que é preciso para acordar sem ter dormido.

E tinha o cheiro. O cheiro do éter. Aquele cheiro que reinava pouco antes das seis, como se fosse o breu da Lapa, turvando as nossas vistas até o sol ficar a pino. Ao meio dia, a gente desconversava o que havia combinado, e as lembranças eram vilipendiadas no espaço entre os vagões. A poesia se despedaçava entre sovacos e perfumes. E se criava também. Filha da urina e do suor. Da gasolina à beira da avenida. Do álcool hospitalar. E do café que saía na cozinha. 

De madrugada, eu chegava no seu apartamento e "o cheiro do vazio me acordava". Tinha limão, tinha goiaba, e tinha também os outros verdes, crescendo longe da janela, como uma vida inteira a me desabraçar de uma paisagem que não era minha.

Mas era. A última fungada que a gente já sabia. Chorei de mentira, como um gato atuando pela fome, puxando a vasilha com a ponta da patinha. Sentado no meu canto, memorizava as cadeiras do jardim de inverno; os esboços do seu trabalho mal-pintado; a TV que se apagou por ela mesma; a calcinha, que você jogou para cima dos sapatos e que eu torço para que lave antes de devolver às partes íntimas; e toda aquela intimidade, desabraçada pelo sono. Você pôs tela na varanda. Mas eu não tinha a intenção. Eu só queria um punhado de ração. 

Depois que nos separamos, eu te evocava durante a aurora de cada madrugada. Nos arredores de Curitiba, enquanto os bichos sondavam a floresta, eu me esgueirava para dentro de um clarão e assistia às araucárias, que coloriam o amanhecer de um jeito muito simples: capim-limão e quatro graus celsius para refrescar os sentidos da gente. Choque de viver. Vontade de nascer como se fosse o próprio vento ("sem lenço e sem documento").

Daquela manhã, o anagrama de uma história, lembrava que fui desabraçado pelo amor que não me dei, mas deveria ter me dado. Somos responsáveis? Somos responsáveis. Mas somos livres. E agora eu passo a vida para frente, entre os amigos gaúchos, que fervem água com o tal do ‘rabo quente’. Passo o mate e a cerveja, passo o gelo e o limão, me passo por doido aos transeuntes que me olham: “o que será que se passa com ele?” Passo raspando. E a passagem é inevitável. Algumas mulheres mais belas que você, mas outras, nem tanto. Alguns taxistas mais bêbados que os nossos, e outros, nem tanto.

A esta hora, você deve estar dormindo, sem imaginar o meu apego às coisas simples da nossa rotina, à estrutura, à repetição: ao medo da morte, que só se curou morrendo. Eu me lembro do fim com certa euforia, porque foi o começo de uma outra novidade.