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Mostrando postagens de maio, 2021

O dia em que voltei pela metade

A noite vinha, seu rosto se partia ao meio. Amigos batiam à porta e ela, mesmo indiferente aos convidados, deixava transparecer repulsas e expectativas que deviam ser só nossas, que entravam e saíam por todos os cômodos. Coisas e pessoas circulavam e partiam sem aviso, comendo o nosso pão, abrindo a nossa geladeira, muito antes da gente ter tempo de dizer: “Olá”. A urgência da juventude se nos emaranhava como um nó, como tentasse reatar o laço frouxo dos nossos sapatos. Porque andar e viver era preciso. E como tudo entrava e saía da vida da gente sem chegada e sem despedida, era como uma trilha enorme de se viver, e a cada passo mais rarefeita.

Pensando no atraso dos móveis que nunca entregaram, me sinto descrevendo o processo de uma perda. Mas o que descrevo é a falta de um movimento pela ausência de janelas. É a falta de ar. Sabe, era fácil se perder naquela casa onde viviam muitos, mesmo que apenas nós. Nos quartos que sobravam, pretensamente despovoados, entravam compromissos que a gente perdia tentando se achar. E o tempo… Também neles eu entrava no meio da madrugada, quando saía de mim o desejo de ocupar-me. Mas nela, sendo uma em que viviam duas, ocupava-se todo o espaço apenas com uma a alimentar os sonhos da outra. Confesso que nunca soube se as duas gostavam de festa, porque essas reuniões, que a gente fazia a contragosto, eram como celebrar a solidão recolhendo o lixo na manhã seguinte.

A cada reencontro, aquele sorriso-de-batom parecia uma coisa só, mas tinha um eu em cada dente, e ninguém sabia. De fato, mesmo a conhecendo bem, eu nunca entendi se ela adorava o ruído das companhias ou se atuava pela demora das horas.

Havia noites em que os intrusos rondavam e ela, parada ao pé da porta, não entrava e nem saía. Ficava à espreita, nos guardando dos besouros que vinham no calor. A gente que se metia a beber conosco também vinha no calor, se a luz estava acesa. E o sossego saía.

Hoje, com a perspectiva do distanciamento, eu já não sei se o abajur dormia ligado pela força do costume ou se alguma das duas, que viviam nela, tinha medo do escuro. A metade que entrava quando a noite entrava, talvez temesse as sombras que se avizinhavam por trás do olho mágico. E quando voltava da porta, sua mudança se via pela respiração. Toda uma vida contada num suspiro. Porque ela fechava o rosto, e o olho dela entrava no meu olho sem deixar que o meu olho entrasse no dela. E sem poder entrar, eu me saía de mim em estado de apneia. O ar suspenso no peito, porque era noite, e o cheiro do vazio me acordava.

Mas um dia, com os sapatos nas mãos, meti a chave na porta e o meu rosto se partiu. Foi então que me dei conta de que ela estava inteiramente em casa, e já nos faltava espaço. Nessa noite, a metade de mim não havia voltado.