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Mais próximos, por dentro

Na noite anterior, eu havia andado sem parar e o corpo doía. Era dia de sábado e, com menos frio, eu cogitei sair à rua por alguma obrigação de ser feliz. Felizmente, de posse de tudo o que necessitava, preferi ficar comigo. À vista da varanda erguia-se uma catedral e, ao seu lado, três pilares em ruínas que já não sustentavam mais nada. Uma árvore, imposta no centro da praça, sugeria ser das mais antigas, testemunha do que a vida comete conosco.

Enquanto deixava passar a angústia, longe de toda a gente que fotografava o vazio, eu me perguntei se a árvore já teria testemunhado a meu respeito. Quem sabe se em outra narrativa, no topo dos pilares, eu tenha estado entre os pássaros que se engalfinhavam por um lugar mais próximo do céu?

Havia nas pessoas, na alma daquelas pessoas, a mesma imagem de ruínas que já não sustentavam seus pesos de origem. No fundo, a essência da história sempre foi a de qualquer autorretrato. Há uma erosão em curso, por dentro.

No fim da tarde, quando o corpo reacendeu, eu quis ir ao encontro do meu caminho. Esperei no jardim do hotel por alguns minutos, até me acostumar com tanto ruído. Em uma semana, era a primeira vez que eu passava um dia inteiro em silêncio. E as primeiras vezes, no curso das erosões, tornam-se mais raras.

Eu ainda procurava os óculos de sol e duas hóspedes agitadas me abordaram, pedindo o meu isqueiro. A primeira, mais sisuda, tinha dois dos três pilares nos olhos, duas histórias grudadas no corpo – e eu as via – mas sua boca só falava polonês. E à minha tentativa de contato, ela respondeu apontando o cigarro, a praça e a amiga sorridente, cujas ruínas se demoravam mais a erodir no vento, porque a cada vez que ela se espreguiçava, o sopro dobrava sobre a sua silhueta.

A amiga sorridente tinha olhos de pássaro. Não sei de onde a conhecia, talvez do café ali em frente ou do domo da antiga catedral. Os turistas subiam ao domo em grupos de dez, e eu jamais saberia a qual leva de pessoas o nosso encontro pertencia. Quando se caminha por entre as construções, há sempre muitas janelas. De modo que, com a sorte da gravidade, nós não costumamos cair para dentro.

“Meu pai se matou quando eu tinha 7 anos”, ela me disse, “e eu nunca me recuperei”. Nos olhos do pássaro havia uma luta, ainda pelo ponto mais próximo do céu. E até que nos desincumbíssemos dos pesos que já não convinham, ela e eu conversamos por muitas horas; e a praça, que nela era como um autorretrato, tornou-se paisagem que se movia, na busca de um reconhecimento: “Seus olhos não param de se mexer”. “Só não se mexe o que está morto”, ela me respondeu. Por entre as ruínas da viagem e as janelas mais vivas, era a primeira vez que eu via a morte se desequilibrando e caindo para dentro. E as primeiras vezes, no curso das erosões, tornam-se mais raras.

O sol posto, já não havia mais a gente que fotografava o vazio. Apenas à luz da rua, eles não eram capazes de enxergar o que a imagem não mostrava. A amiga sorridente me abraçou demorado e agradeceu pela nossa conversa. O meu corpo não doía, porque houve uma noite lenta a nos espreguiçar, em que permanecemos sentados sob a copa daquela árvore. Quem sabe se num outro encontro, numa outra narrativa, nós já tenhamos disputado algum espaço entre as ruínas e as raízes, mais próximos da terra?


Imagem: © Pedro Cavalcante

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