Parte I: Deus e a ciência, ou “Conquistar para dividir”
Ano de 2020, COVID-19, segunda semana de isolamento… E não que estejamos vivendo na ficção distópica que alguns anunciaram. Também não é que a normalidade ainda tenha contexto no palco do caos, quando ninguém (em sã consciência) se atreveria a encená-la. O caos mitológico é, ele mesmo, como o princípio indefinido das coisas, o vazio onde Elohim ordenou a existência da luz. Deus pensou: “Haja luz!”, e a gente se encarregou de fazer a bagunça.A essa altura de uma bagunça tão antiga, portanto, nós precisamos compreender os humores exaltados: “quem tem pia de louça para lavar não se preocupa com bobagens”, foi o que me disseram. E talvez seja verdade. Pensando, honestamente, sobre isso, também parece ser verdade que a proposta do isolamento ainda se apresenta como um tipo de privilégio, como opção para seletos indivíduos que podem gozar das recomendações que a ciência nos dá… De graça.
Quer dizer, não exatamente de graça, né?! As recomendações que a ciência agora pode nos dar de graça, depois que muitos e muitos outros, aqueles que vieram antes, pagaram o preço em nosso lugar. E isso quer dizer, sim, que as fake news que pretendem desdenhar do mecanismo de contágio, que as ironias do seu tio-avô sobre a importância das máscaras e, sobretudo, que as estatísticas do Imperial College London, de certa forma nós devemos todos esses lances de conhecimento, opinião ou debate — quaisquer que sejam seus valores intrínsecos— aos mortos da Gripe Espanhola e ao Doutor Ignaz Semmelweis, médico que acabou num hospício por insistir que seus pares lavassem as mãos.
Nós devemos aquilo que somos, de bom e de ruim, a diversas pessoas: como história, como medicina, como biologia, sem dúvidas, mas também como um pacto de honra à ancestralidade e a sistemas que são muito maiores do que nós, cujas causas nos excedem em todas as medidas. Nesse fosso entre o corpo e o espírito, entre a poesia e a técnica, o ponto de inflexão mais simples em nossas diferenças é a escolha do binóculo que usamos para olhar.
Mas olhar para quê? Olhar para o mundo, como experiência, como espaço pessoal, familiar e coletivo. Qual seria o pecado original senão a ignorância sobre o preço (e sobre o peso) de tudo o que trazemos? A ignorância sobre aquilo que os ríshis fizeram perpetuar entre os povos da Índia; sobre o que tantas mães e pais fizeram perpetuar pela memória de seus filhos; sobre as ideias em nome das quais cientistas e “bruxas” morreram — por vezes juntos — para que a história sobrevivesse, no coração da humanidade.
A humanidade, sim, ela cai. E se já caiu, só pode ter sido por isso mesmo, porque olhamos para o conhecimento, mas só vemos as dores. Olhamos para o conhecimento, que nos estende mãos e braços e diz: “vá por aqui”, mas hesitamos, ou até rimos. O nosso pecado começa num péssimo uso da inteligência, no mau uso das respostas que escutamos em nós. Pouco a pouco, ao nos alfabetizarmos em letras que pareciam vagas, nossas escolhas ganham vida pelo sopro da responsabilidade; e ao assumirmos o destino do que estamos escolhendo, o “livre arbítrio” finalmente se transforma em arbítrio, de fato.
Há muito para pensar, meu caro leitor, sobre por que fazemos da vida uma competição. Há muito para se dizer sobre isso, pois a História é longa e o tempo é relativo. Houve épocas, até, em que a filosofia e a física caminhavam juntas, e as figurinhas de Descartes e de Newton, nós podíamos comprá-las num mesmo pacote. Extrapolando o contexto dessa observação, não faz sentido pensar — na realidade atual— que tais mecanismos de conhecimento tenham passado a competir para narrar o que somos. Enquanto alguns especulavam a imbricação entre a mente e a alma, outros analisavam a continuação entre o corpo e o átomo. Cada qual no seu quadrado, na sua vibe. Sempre houve espaço para todas as propostas.
Por sorte, a ciência afastou-se da religião. Suas disciplinas se especializaram, criando fórmulas (e narrativas) para tentar separar o que é o científico: o joio do trigo, os céus da terra. Como o universo do trabalho, que se regulamentou para atender à vida urbana, global, o conhecimento estruturou-se em limites mais retos, passando a evidenciar — pela clareza do juízo e o ruído dos juízes — o que há de melhor e de pior em nós. Os argumentos e a fé cega, a razão e a paixão, eles estão todos lá, reunidos como partes do ser-no-mundo em sua vasta humanidade.
Parte II: Deus e o COVID, ou “Dividir para conquistar”
Relendo tudo isso, agora, eu me divirto por lembrar que essa divagação só nasceu para responder a certas críticas da metafísica. Nomeadamente, o incômodo que as visões espiritualistas, psicoterapêuticas ou filosóficas têm causado a algumas pessoas, quando aplicadas ao contexto socialmente sensível (e obviamente alarmante) da pandemia viral e de seus desastres. O texto nasceu porque, para mim, quando pessoas denunciam os olhares que imaginam extraordinários — ou pelo menos as visões extraordinárias do mundo de hoje — há uma ênfase comum transparecendo em seus discursos: a de que olhar para o imaterial, dizem eles, significar deixar de olhar para “a verdade”. E então voltamos, inacreditavelmente, à velha briga pela posse da verdade, essa loucura que não se esclarece e nunca se esgota.
O texto nasceu para questionar se quem olha para “dentro” deixa mesmo de olhar para o corpo, e para as vítimas do corpo; se quem olha para dentro desconhece as mazelas da vida contemporânea, da pobreza, da ganância; para entender se quem observa a saúde mental (ou o bem-estar espiritual) da pessoa em reclusão deixa de olhar para o aspecto epidemiológico da doença, para as medidas de isolamento, de higiene, de cuidado; se quem “filosofa” sobre o tema da pandemia deixa de pensar na omissão do Estado frente aos alardes internacionais. Na ponta do lápis, são tantas as coisas que nós, os místicos, deixamos de fazer, que eu procuro recordar em que momento aceitamos essa guerra pós-argumentativa, esse front de visões que se matam para vencer a explicação da realidade inexplicável.
Durante a semana, estive lendo uma matéria a respeito de Yuval Harari, docente da Universidade Hebraica de Jerusalém. O texto apresenta uma síntese das visões do historiador sobre o que encontraremos na pós-pandemia: um mundo que não voltará a ser como era antes, inclusive porque, em processos históricos, a viagem de volta não está disponível. Fiquei pensando, com meus botões, se as mesmas pessoas que criticam o imaterialismo mandariam Yuval lavar uma louça. E talvez lhe falte mesmo uma louça para lavar. Ou talvez não lhe falte. O que temos de botar em pratos limpos (com o perdão do trocadilho) é a percepção de que “olhar para dentro” e “olhar para fora” constituem margens inseparáveis de um mesmo caminho. E a possibilidade de que as nossas rixas não sejam mais do que indiferenças às diferenças, ou do que problemas (e preconceitos) no uso assertivo, contextual, da linguagem.
Neste ponto em que chegamos, portanto, a contraposição do pessoal ao coletivo tornou-se insustentável. A cada segundo de incerteza, nos deparamos com mais e mais pessoas fragilizadas, agitadas e confusas em todos os âmbitos de suas vidas. Pessoas ansiosas por respostas que já não conseguem encontrar na rotina, que já não conseguem vislumbrar no raso. O “raso”, afinal, é como uma pedra que rachou ao meio, enquanto ainda nos equilibramos — de pé — por entre os escombros de um imenso terremoto.
Esclareço que a ideia de “raso”, aqui, não tem qualquer conotação totalitária, como se apontasse para algo que todos precisam saber, concordar ou considerar. Longe disso, muito longe disso, eu procuro me ater aos anseios reais que têm se apresentado — implícita ou explicitamente — a cada pessoa em nosso corpo coletivo: esse corpo composto de corpos compostos de… Átomos? Em outras palavras, estamos debatendo algo que só flerta com o individualismo se quiser flertar. E o vazio solitário do cotidiano (espécie de “luto”), que ao menos lance o gérmen para o questionamento da vida, do trabalho, da família, da morte, do Estado, das desigualdades, enfim, de todos os modelos que nós construímos e que agora nos sufocam.
Por um outro ponto de vista, que só se completa no olhar para “dentro”, não há conjuntura, na história recente, que revele com tanta veemência o funcionamento da luta de classes, a despeito do nosso juízo e das nossas imagens sobre esse conceito. Além disso, não há situação que exponha com tanta clareza que o dinheiro e a propriedade quase sempre valem mais do que a vida das pessoas, sobretudo a vida dos trabalhadores pobres. Não há capítulo contemporâneo que exponha tão bem as aberrações do sistema financeiro, que se desmancha no ar com a mesma facilidade com que os nossos corpos se desmancham no túmulo. Um vírus. Uma coisa microscópica.
E contra o fardo invisível, contra o apocalipse e contra a loucura, quais são as ferramentas de que dispomos para atravessar o rio do Hades, como o faz o barqueiro Caronte ao ligar os caminhos da vida e da morte? Quando a coisa aperta, o nosso olhar é coletivista, materialista, individualista, espiritualista, militante, pacifista, politizado, racional, emotivo, intuitivo, romântico ou biomédico?
O ponto, no fundo, é o que está acontecendo exatamente agora, o que não sabemos nomear e nem significar no presente momento. O ponto é que algo está acontecendo! E a vida das pessoas, definitivamente, não é mais a mesma. Olhar para isso depende de uma disposição sincera, ampla e profunda. Quaisquer que sejam as diretrizes dos nossos discursos, é complicado e perigoso que alguém tente nos dizer que os voos e os mergulhos são meras bobagens. Eles não são bobagens porque a vida mental e a vida espiritual das pessoas, os medos, as inquietudes e as inclinações… Nada disso são bobagens. Se observarmos, com perícia, veremos o mesmo tipo de intolerância que a alienação da vida “comum”— nascer, crescer, trabalhar, morrer — sempre propiciou contra a poética da existência, contra o sentido e contra a felicidade que todo ser humano deseja encontrar.
É evidente, portanto, que eu respeito os que com isso se incomodam. O incômodo é um direito que, graças a Deus, nós ainda conseguimos exercer em home office. O que permanece difícil de compreender — e sobretudo de respeitar — é a insistência pública e deliberada, por parte de pessoas esclarecidas, em associar quaisquer incursões espirituais, psíquicas ou metafísicas com toda sorte de revisionismos, de dogmas e de doutrinas: com esse ou com aquele movimento, com essa ou com aquela “teoria da conspiração”, com essa ou com aquela igreja, com esse ou com aquele blogueiro, com esse ou com aquele autor de best sellers que você gosta ou que você não gosta. O que não tem cabimento é a gente pôr um selo de inimigo em tudo o que nos for esquisito, alheio, excêntrico, incômodo; em tudo o que estiver no terreno do “outro”, como tantas pessoas insistem em fazer. Porque é (ou talvez seja) claro que há muitas formas de olhar para os dramas da vida. Também é claro que a superficialidade e a ignorância não escolhem lado. Quem escolhe lado são as pessoas.
Para além da quarentena, para além da economia, para além da medicina, para além dos governantes. Para além de toda a gente sem dinheiro, trancada, com medo, com fome. Para além de toda a catástrofe que se derrama sobre as nossas cabeças, e para além de tudo isso… Restamos nós. Atônitos, restamos imersos em nosso silêncio, que é a solidão mais inalcançável onde se acabam todas as pessoas. Restam as pessoas como pessoas, em sua simplicidade e sua delicadeza. E restam as pessoas, também, como elementos que se aninham num todo pensante, que escrutinam o mundo que elas mesmas inventaram (e que agora se reinventa). O nome disso é espiritualidade? O nome disso é filosofia? O nome disso é louça na pia? Qual seja a resposta, não somos obrigados a ter ânimo de olhar para essas coisas que tanto nos provocam, e está tudo certo. Quem quiser olhar, que olhe! Quem tiver tempo, vontade, coragem, disposição e a pia limpa… Então, que olhe! E quem não quiser olhar, que vire a cara quando a mente e e o coração lhe disserem, em uníssono: “vá por ali!”
Comentários
Postar um comentário